O cala-boca que veio das urnas - Editorial do JBO povo venezuelano disse não aos sonhos de poder infinito do presidente Hugo Chávez. De forma pacífica, foi às urnas no domingo e rejeitou os dois blocos de propostas de emenda à Constituição, que tornariam o país uma espécie de Cuba movida a petrodólares. Mais que uma derrota pessoal do candidato a ditador bolivariano, o resultado confirma a vitória da democracia - afinal, o mesmo processo democrático que o elegeu (e lhe garantiu sucessos em outras consultas populares) foi o responsável pelo baque de agora. No primeiro bloco de emendas, 50,7% dos votantes rechaçaram a proposta que, entre outros itens, permitiria que o presidente se candidatasse indefinidamente ao cargo. A diferença entre o "sim" e o "não" foi de apenas 125 mil votos - num universo de 9 milhões de eleitores que efetivamente foram às urnas, de um total de 16 milhões aptos a votar. No bloco seguinte, 51,05% dos eleitores derrubaram a proposta que permitiria diminuir a idade dos eleitores (para 16 anos) e restringiria a liberdade de expressão durante os estados de exceção. A margem aí também foi muito apertada: 187 mil votos. A estreita diferença de votos evidencia uma sociedade dividida. Mas que não deve baixar a guarda. Embora tenha aceitado a derrota ainda na madrugada de ontem, Chávez avisou - num misto de ameaça tirânica e bravata messiânica - que "por enquanto" não conseguiu aprovar as reformas que tanto queria. Deixou claro que vai continuar tentando. É aí que mora o perigo. O venezuelano arregimentou vários seguidores no continente. Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador, são os maiores exemplos. Tentam, a ferro e fogo, impor mudanças às Cartas de seus países, pondo em risco os predicados democráticos ali consagrados. O recado de Caracas serve também para Brasília. Afinal, a diplomacia brasileira, nos últimos anos, optou pelo atestado ideológico, em detrimento dos reais interesses do Estado. Ao abonar um sem-número de gestos, palavras e atos do "companheiro" Chávez, o presidente Lula (e, por extensão, o Itamaraty) equivocadamente alinhou-se ao vizinho. De olho em arriscados empreendimentos comerciais e em nome de uma utópica união hemisférica, o Brasil emprestou a Chávez um respaldo que este jamais mereceu. Difícil imaginar como manter laços firmes com um governante que abraça aliados acusados de envolvimento em ações terroristas (como o Irã) e costumeiramente desrespeita outros líderes (ao comparar George Bush ao diabo e chamar de fascista o ex-primeiro-ministro espanhol José María Aznar). O Estado brasileiro tem de estar acima de questiúnculas e factóides inventados pelo vizinho. Deve, sim, zelar pela defesa da democracia e pela salutar alternância de poder - em solo pátrio ou estrangeiro. Caso a Venezuela siga o rumo escolhido pela maioria de seu povo, o Palácio de Miraflores terá novo ocupante em 2013. Até lá, no entanto, o atual inquilino deverá manter-se fiel à Constituição ainda em vigor. O que se espera agora é que os aprendizes de tiranete latino-americanos - e o próprio patrão - compreendam o claro aviso das urnas: o eleitor não referenda ditaduras. E na primeira oportunidade que lhe é concedida, pede comedimento de seu governante. Que, desta vez, levou um popular cala-boca.
A derrota de Chávez - Editorial do Estadão
Há pouco mais de quatro semanas, quando já faziam grandes manifestações nas ruas das principais cidades da Venezuela, a palavra de ordem dos estudantes era pedir o adiamento do referendo marcado para 2 de dezembro e, se não fossem atendidos pelas autoridades eleitorais, fazer a propaganda da abstenção. Argumentavam as lideranças estudantis que a grande maioria da população não conhecia, em detalhes, o texto da nova constituição, que o governo somente divulgava as medidas populistas introduzidas no texto - como a redução da jornada de trabalho - e que, conhecido o teor ditatorial da carta, o povo a rejeitaria.Faltando cerca de 20 dias para o referendo, os estudantes se convenceram de que, se insistissem nessa tática eleitoral, o resultado seria o desastre. Nas últimas eleições parlamentares, os partidos de oposição não apresentaram candidatos, em sinal de protesto contra as arbitrariedades de Hugo Chávez, e o resultado foi uma Assembléia Nacional 100% chavista, que só não aprovou o projeto constitucional de Chávez por unanimidade porque os oito deputados do Podemos declararam dissidência. Os estudantes não queriam repetir o erro.Ao mesmo tempo que os estudantes tomavam a decisão de fazer a campanha pela participação maciça no referendo, votando "não" à constituição liberticida, o general da reserva Raúl Baduel, ex-ministro da Defesa, que havia rompido com Chávez por se opor à reforma constitucional, fazia campanha contra o que denunciava como uma tentativa de golpe contra a democracia.No domingo, o coronel Hugo Chávez, que se considerava imbatível nas urnas, depois de ganhar uma dezena de eleições, foi derrotado. A maioria dos eleitores venezuelanos rejeitou a constituição que colocaria nas mãos do presidente, incondicionalmente, todo o poder do Estado, além de acabar com a livre iniciativa e a propriedade privada.O general Raúl Baduel, com sua pregação diária, conseguiu unir algumas lideranças da oposição, até então dispersas e sem objetivos comuns, em torno do "não" à reforma de Chávez. As lideranças estudantis, por sua vez, revelaram uma surpreendente capacidade de mobilização. "Jovens que querem viver em liberdade, que querem ter trabalho e educação, votem", conclamavam os líderes. E, juntos, conseguiram colocar o coronel Hugo Chávez na defensiva, transmitindo ao eleitorado chavista a idéia de que votar contra a constituição, ao contrário do que dizia a propaganda oficial, não era votar contra Chávez - que continua tendo altos índices de popularidade - e muito menos destituí-lo da presidência, pois tem mandato até 2013.Durante todo esse processo eleitoral, quase não se ouviram os nomes dos partidos tradicionais venezuelanos nem dos que se formaram depois que Chávez assumiu o poder, há nove anos. A reação ao autoritarismo de Chávez deveu-se a movimentos espontâneos e informais, fora dos quadros partidários. Mas ainda é grande a apatia dos eleitores venezuelanos. Na Venezuela, o índice de abstenção é normalmente alto. Nas eleições anteriores disputadas por Chávez, ele nunca conseguiu mais votos do que os de seus adversários somados aos eleitores que não compareceram. Dizia-se que ganhava as eleições por causa da abstenção da maioria silenciosa. Pois no referendo de domingo, que Chávez perdeu, a abstenção foi a maior da década, chegando a 44,9% dos eleitores inscritos.Hugo Chávez aceitou a derrota com aparente tranqüilidade. Mas as forças que o derrotaram não podem se desmobilizar. A constituição rejeitada dava todos os poderes a Chávez. É preciso considerar, porém, que os poderes de que ele dispõe já são, na verdade, ditatoriais. Ele controla o Legislativo e o Judiciário, podendo destituir e nomear juízes à vontade. Dispõe, sem restrições, do Tesouro nacional, aí incluídas as receitas bilionárias do petróleo, que utiliza para financiar suas políticas assistenciais, dentro e fora do país. Mas o mais importante é que Hugo Chávez ainda pode fazer uso, por mais oito meses, da famigerada Lei Habilitante - uma delegação de poderes que obteve da submissa Assembléia Nacional. O general Raúl Baduel adverte, com procedência, que ele pode tentar impor ao país, com medida infraconstitucional, as reformas ditatoriais que o eleitorado rejeitou. Certamente, Chávez não vai desistir do que não obteve no domingo.
Limites de Chávez - Editorial do Globo
É extraordinária, nas circunstâncias, a decisão do povo venezuelano de rejeitar a reforma constitucional de Chávez. Ela se impôs a despeito do empenho pessoal do presidente, do bombardeio da máquina estatal de propaganda e do prognóstico da maioria dos institutos de pesquisa. Merecem registro também o desempenho dos instrumentos de consulta popular, que não escamotearam a vontade da maioria, e a própria reação de Chávez, imediatamente reconhecendo a derrota. Os números apertados do referendo refletem a profunda divisão entre chavistas incondicionais, de um lado, e opositores ao projeto de reforma constitucional e críticos do presidente, de outro. Divisão que é uma das conseqüências mais sinistras do projeto de Chávez de implantar no país um regime personalista, ditatorial. A abstenção no referendo, de mais de 44%, demonstra que o chavismo já não entusiasma como antes seus adeptos e que isso pode ter sido um dos fatores do fracasso do governo. Por outro lado, a mobilização da oposição faz crer que ela tenha aprendido a lição de 2005, quando boicotou as eleições legislativas e cedeu de bandeja a Assembléia Nacional para os chavistas. De todo modo, abre-se uma frágil janela para o futuro, por cuja integridade governo e oposição devem zelar. Chávez tem mais cinco anos de mandato sob a égide da Constituição Bolivariana de 1999. Sua primeira derrota eleitoral, longe de induzi-lo a recaídas golpistas ou a revanchismos, deveria levá-lo a reconhecer os claros limites expressos pelos venezuelanos sobre sua permanência no poder e o tipo de instituições que desejam para o país. Em seus quase nove anos no poder, Chávez promoveu reformas que mudaram definitivamente a Venezuela nas esferas institucional, política, social e econômica. O bolivarianismo e o "socialismo do século XXI" incorporaram doses maciças de autoritarismo populista, cuja ampliação num projeto constitucional totalitário foi rejeitada pelo povo. É um claro recado ao caudilho para que use os cinco anos em prol da democracia, abrindo um amplo diálogo com a oposição e com os novos personagens criados na esteira do referendo - os dissidentes do chavismo e os estudantes. Os vitoriosos de domingo, por sua vez, devem tomar consciência da delicadeza do momento e recorrer a doses maciças de paciência e sabedoria para não quebrar a frágil janela, evitando inúteis provocações e armadilhas que dêem aos setores chavistas motivos para reações truculentas, que ponham tudo a perder.